Aforismos sobre Narciso

Ovidio O. Pogliesi
5 min readDec 6, 2020
Narciso Caravaggio

Sobre o Narcisista

1. O narcisista não é alguém que “se acha”. Não vou usar o termo “narcísico” pois, até onde posso perceber, é mais uma profilaxia para o termo “narcisista” cuja carga pejorativa tenta-se evitar (narcisismo é “ismo”). Mesma profilaxia quando se chama empregados de colaboradores e favelas de comunidades, por exemplo.

2. Narcisismo é, stricto senso, uma característica normal em todos os seres humanos. Portanto, em maior ou menor grau, somos todos narcisistas.

3. Clinicamente falando, quando este grau atinge um ponto preocupante, temos então um Transtorno de Personalidade Narcisista, condição caracterizada por sentimentos exagerados de auto importância, uma necessidade excessiva de admiração e uma falta de compreensão dos sentimentos dos outros (“empatia”) e cuja causa é desconhecida.

4. Clinicamente falando, portanto, o narcisista não é “um miserável de autoestima que finge se achar o máximo para combater justamente a sua miséria interior” (discordando de artigo que li) — é alguém com um grande problema.

5. A supervalorização de si mesmo pode ser, simplesmente, uma manifestação do efeito Dunning-Kruger, fenômeno pelo qual indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais que outros mais bem preparados — uma espécie de superioridade ilusória.

6. O narcisismo se transforma em patologia, ou seja, passa do estado normal para o doentio quando entra em conflito com ideias culturais e éticas, tornando-se excessivo e dificultando as relações normais do indivíduo no meio social. (cf. Freud).

7. Um certo grau de narcisismo, além de natural, pode até ser desejável, especialmente se desejamos navegar pelas águas turbulentas da atual configuração da sociedade Ocidental — aquela do Capitalismo de Livre Mercado: nessa configuração, os bonzinhos terminam em último lugar.

8. Narcisista não é o “bonzinho”; não há, portanto, algo como o “narcisismo dos bons” — os bons vão ficar para trás e o narcisista quer vencer, uma vez que está sempre em competição com os outros e, não raras as vezes, consigo mesmo.

9. Pesquisa classifica os quatro tipos de pessoas que se sobressaem nesta configuração de mundo: psicopatas, maquiavélicos, narcisistas ou uma combinação dos três.

10. O narcisista (comedido, não patológico) é, via de regra e entre outras coisas, arrogante, apático e egoísta, mas ele é muito bem sucedido.

11. Odiar o narcisista ou diminuí-lo sob qualquer aspecto é mais um sintoma do ressentimento daqueles com pouca coragem para sair do trivial da vida. “Trivial da vida”, obviamente, é um eufemismo para “mediocridade”.

12. O narcisista não representa “o lado do bem no mundo” — representa o lado bom do mundo. Por que não encher o peito com o orgulho de quem trabalhou duro para fazer algo realmente bom? Melhor ainda, fazer algo melhor que a maioria de invejosos e ressentidos?

13. Não querer criar os melhores filhos, comer nos melhores restaurantes, fazer as melhores viagens ou, em suma, querer ter as melhores experiências possíveis em nível individual é simplesmente uma tentativa estapafúrdia de evitar ferir suscetibilidades. Ou seja, é condescender ao politicamente correto.

14. Um questionamento válido seria se uma real autenticidade pode ser atingida na atual configuração da sociedade Ocidental, esta que substituiu religiões antigas por uma chamada empreendedorismo.

Sobre (fazer) o Bem

15. Animais não fazem o Bem, nem o Mal. Animais apenas são.

16. O Homem transcende o homem (Homo sapiens) enquanto ser biológico. Em algum ponto, os ditames da seleção natural (Darwin) não influencia mais os destinos do Homem. O Homem é mais do que o Animal.

17. Há Homens que fazem o Bem, e há os que fazem o Mal. Como tudo, isso também pode ser uma escolha para os que têm capacidade cognitiva e intelectual que permita um mínimo de discernimento. Por que, então, não desejar fazer o Bem? Especialmente se entendermos por “fazer o Bem” algo que nos leve à realização da Vida Boa.

18. O mundo é cheio de dramas que demandam soluções. Etiologicamente falando, são esses dramas que, a meu ver, levam mais e mais pessoas a tentarem fazer algo bom, desde que obviamente suas necessidades básicas já estejam satisfeitas.

19. “Fazer o bem” tornou-se um imperativo para as massas de gente fraca porque este tipo de gente carece de uma vida realmente autêntica. Sua tentativa patética de emular os feitos de, digamos, narcisistas passa pelo próprio escarnecer dos últimos pelos primeiros.

20. “Fazer o bem” envolve pôr a mão na massa.

21. Se um indivíduo chega ao ponto de ter que dizer que faz o bem, então esse fazer o bem não é autêntico e suas ações não são sinceras. Fica então o vazio da tentativa frustrada de fazer algo que equipare tal indivíduo ao melhor da espécie humana (que, às vezes, pode ser um narcisista).

22. Como preencher o vazio? Dogs, bikes, festivais de food trucks, de botecos, de cervejas e congêneres; hambúrgueres gourmet e “os melhores restaurantes”; todos candidatos a estofo, recheio de pastel.

23. De onde vem essa necessidade de preenchimento? O que foi esvaziado? Certos valores (ou, digamos, “características naturais”) inerentes ao Homem fora do estado de natureza foram (quase que completamente) esvaziados justamente pela configuração da sociedade Ocidental — aquela do Capitalismo de Livre Mercado, mas que se iniciou bem antes com o Iluminismo: nada é de graça; há sempre um preço a pagar para nos tornarmos o centro do universo.

24. Ao elevar-se e sair de sua posição de mero animal, o Homem sente a necessidade de algo que explique e ao mesmo tempo o conecte à essa nova “superioridade”. Deve haver uma “instância superior”. A vida, afinal, tem que ter um significado.

25. O Homem então cria a religião.

26. Carl Gustav Jung sentia que as religiões tradicionais poderiam fornecer meios adequados de relacionamento com o infinito.

27. Religiões tradicionais (como sistema de valores), ou qualquer sistema de valores sempre foram bons locais para se procurar por significado.

28. Instituições religiosas, em geral, determinavam (via dogma) o que deveria ser considerado “bom”. Isso não impedia que Homens tivessem uma relação real (e autêntica) com o que, de fato, seria “bom”, o “bem”, a “vida boa”, etc., desde que dispostos ao “salto de fé” (cf. Kierkegaard). Também não impedia que conhecimento fosse difundido e, guardadas as devidas proporções, fomentado.

29. Instituições religiosas, longe de ser “zonas de risco” de qualquer coisa, sempre foram o porto seguro da Humanidade, mesmo considerando o que isso possa ter de negativo.

30. Com efeito, o aspecto “negativo” só passa a ser conhecido a posteriori.

31. A proposta Iluminista, ao colocar o Homem no controle de seu destino (tendo a razão como instrumento), esvazia os sistemas de valores vigentes, sendo os valores religiosos os mais proeminentes, o que conduziu à atual secularização da sociedade.

32. Como o Homem necessita da veneração daquilo que é superior, as substituições são inevitáveis. Na falta do sagrado, que seja o profano: coisas, posses, dogs, bikes, hambúrgueres, etc.

33. O narcisista venera a si mesmo, mas considerando as alternativas, é um ótimo trade-off.

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Ovidio O. Pogliesi

Professor de inglês tentando “escrever”. Apesar da pouca experiência, acredita ser suficientemente cara-de-pau para passar vergonha em público.