Ratos e saxofones

Ovidio O. Pogliesi
2 min readApr 24, 2020

Alguns dias atrás assisti a um vídeo onde uma manada de velhos adentrava o Shopping Neumarkt em Blumenau. Peço perdão pelo uso da palavra “manada”, mas fiquei tão horrorizado que ainda hoje não consigo pensar em outra que seja pelo menos mais, digamos, policamente correta. Parecia um daqueles filmes com zumbis marchando em passo capenga, meio arrastado, meio debilitado que só os velhos conseguem ter. Eu sei porque é assim que eu me arrasto do quarto para a cozinha todo dia de manhã. Os “neo-zumbis” de Blumenau marchavam ao som de um saxofonista igualmente capenga — será ele mais um desses que acham que estão abafando, ou simplesmente está, como muitos de nós, tentando sobreviver? Gostaria muito que fosse esse do segundo tipo, mas em se tratando de Blumenau, não vou colocar a mão no fogo por ele não.

hamelin flautist
Não há ratos, que venham os velhos

Lembrei imediatamente do “Flautista de Hamelin” dos irmãos Grimm. Só que na “Hamelin dos trópicos” (também conhecida como Blumenau), não foram os ratos que foram encantados pelo som da flauta para fora da cidade, mas os velhos que pareciam hipnotizados pelo som do saxofone para dentro do shopping center.

Senti calafrios com aquele passo mecânico, estranhamente coordenado, de velhos batendo palmas ao ritmo da música e dos próprios passos erráticos, com o olhar vidrado e rostos parcialmente escondidos pelas máscaras — o que fazia com que todos tivessem, como os zumbis, a mesma aparência fantasmagórica daqueles que ainda buscam uma centelha da vida que já lhes falta na tentativa de manter — a duras penas — uma pseudo-vida que seja. Nos filmes apocalípticos, essa busca é pelos suculentos cérebros dos não-zumbis. Nos apocalipses da vida real, aparentemente, essa busca encontra consolo na simples sensação de pertencimento a um cenário que não mais lhes fazia sentirem-se bem-vindos (Fique em casa, velho!). Como um último desaforo, os neo-zumbis da Hamelin dos trópicos desafiam tudo e todos: as autoridades de saúde, membros mais sensatos de suas próprias famílias e, pior, o bom-senso. Como todo último desaforo, este também é triste, melancólico, patético.

Meus passos erráticos e um tanto vagabundos das manhãs entre a cama e a geladeira me conferem, paradoxalmente, certa autivez nessa minha renegada velhice. Penso, não com meus botões, mas com o vidro de café solúvel que seguro nas mãos como um Hamlet segurando o crânio de Yorick: “Não! Posso até me dedicar ao dominó e aos bingos, posso até acordar cedo para varrer a calçada usando calça de moletom, mas jamais, por essa luz que me alumia, jamais serei pego caminhando trôpego e em bando, mesmerizado pelos sons sedutores de um saxofone!”

Após esse arremedo tosco de monólogo patrocinado pelo Nescafé e enquanto espero a água ferver, vou apagando o Kenny G. da minha playlist.

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Ovidio O. Pogliesi

Professor de inglês tentando “escrever”. Apesar da pouca experiência, acredita ser suficientemente cara-de-pau para passar vergonha em público.